A raiva é uma doença viral, transmitida no Brasil pelo morcego da espécie hematófago, comumente encontrado em áreas escuras e de mata. Provoca inflamação e, uma vez que atinge o sistema nervoso central, é fatal. No caso dos bovinos, pode levar de 30 a 60 dias para os sintomas se manifestarem no animal. Em Mato Grosso do Sul, a Agência Estadual de Defesa Sanitária Animal e Vegetal (Iagro), registrou quatro novos casos de raiva bovina, recentemente, em uma única região do estado, e pediu atenção dos produtores sobre os cuidados com a doença.
Saiba mais sobre a raiva, como a periculosidade ao ser humano, medidas de prevenção e identificação da enfermidade no rebanho, nesta entrevista com o professor-associado da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (Famez), Ricardo Antônio Amaral de Lemos, responsável pelo projeto de pesquisa “Caracterização epidemiológica, clínica e patológica e determinação do impacto econômico das doenças de ruminantes e equinos em Mato Grosso do Sul”.
C.B.: Como é possível identificar um animal infectado pela raiva?
Ricardo: A gente poderia responder a pergunta abordando a questão do diagnóstico clínico, que é pelos sinais. Geralmente, na nossa região, é principalmente um quadro de paralisia, que começa pelos membros pélvicos, pelas partes posteriores e vai se ascendendo até o animal entrar em um quadro de paralisia total, podendo ter salivação também. Então, começa com uma paralisia dos membros posteriores, uma dificuldade para locomoção e isso vai progredindo. Depois vai apresentar salivação, entra em decúbito lateral, fica deitado, pranchado como o pessoal fala. Existe uma série de sinais, mas esses são os mais fáceis de se reconhecer. Posteriormente, a doença é, invariavelmente, fatal, então sempre esses animais vão morrer. Como os sinais são nervosos, são difíceis de diferenciar de outras doenças que causam os mesmos sinais. Então, daí a necessidade de fazer necrópsia, coletar material, principalmente do sistema nervoso central, o encéfalo e a medula para encaminhar para o laboratório especializado. Podemos fazer o exame de riso patologia, onde verifica-se as lesões que o vírus causa no sistema nervoso central do animal e exames também de imunofluorescência direta, inoculação intracerebral em camundongos. Esses dois são considerados as provas oficiais do diagnóstico da raiva.
C.B.: Quanto tempo demora para sair o resultado deste diagnóstico?
Ricardo: Depende muito da prova. Uma imunofluorescência direta em 24h é possível fazer. Deve ser coletado [o material] refrigerado e encaminhado, o que a gente chama de prova A. Chegando o material no laboratório, se estiver em boas condições, às vezes no mesmo dia é possível fazer. A inoculação intracerebral é um exame mais demorado porque o camundongo será acompanhado. Então, às vezes, esse exame tem que esperar até 30 dias para ver se vai ou não desenvolver a doença. No riso patológico, o material tem que ser fixado em formol, depois processado para leitura das lâminas, o que leva, em torno, de 3 a 5 dias. Geralmente, como trabalhamos com todos os exames, tem o diagnóstico e a prova rápida, que em 95% dos casos, aproximadamente, já resolve e consegue concluir. Às vezes, pode dar negativo e, se há uma suspeita muito forte, a gente recomenda sempre aguardar pelas outras técnicas.
C.B.: Como o resultado pode demorar até um mês para ser concluído, de qual maneira o produtor que possui a suspeita da doença na propriedade deve se comportar para prevenir a possível proliferação?
Ricardo: Depende do foco onde está acontecendo, porque o problema todo no controle da raiva é o período que a gente chama de incubação. O que é um período de incubação? É o tempo que o animal foi inoculado com o vírus e deve apresentar os sinais clínicos. Geralmente, esse tempo varia no caso dos bovinos. Mais comum em condições naturais, entre 30 a 60 dias. Se o animal foi inoculado hoje, ele vai desenvolver os sinais daqui 30 a 60 dias. Infelizmente, nesse tempo que o animal foi inoculado não tem medidas para conter a doença. Então, qual é a estratégia de medida de controle? Que os animais devem estar devidamente imunizados, antes de serem inoculados pelo morcego. Por exemplo, não adianta vacinar um animal, porque o tempo que vai levar para a vacina produzir anticorpos é maior que o tempo do vírus chegar ao sistema nervoso. Depois que ele está no sistema nervoso, esse corpo não consegue passar o que chamamos de barreira hematoencefálica e fazer a proteção. O vírus da raiva inoculado no animal multiplica-se primeiro no tecido muscular para depois chegar ao tecido nervoso. Então, a ideia é que os animais estejam devidamente imunizados, ou seja, que tenham recebido uma dose, mais o reforço da vacina antes de serem desafiados pelo morcego. O momento para combater o vírus é quando está se multiplicando no tecido muscular. Depois que chegou ao tecido nervoso não tem mais o que fazer. No caso de pessoas é diferente, o bovino é muito difícil de transmitir a doença para os seres humanos porque não tem hábitos de ficar agressivo e não morde. O maior risco é no caso da pessoa ou veterinário manipular o animal quando vai fazer a necrópsia e acontecer algum acidente, se cortar enquanto está manuseando o sistema nervoso central ou em casos de agressão por cachorros infectados com raiva. Nesse caso, a medida correta é encaminhar para o serviço especializado onde vai ser feita uma avaliação. No risco real de ocorrência da doença e transmissão, as medidas são tomadas antes mesmo de se fazer um diagnóstico. A gente não fica esperando sair o resultado porque aconteceria a mesma coisa que nos animais. Quando o vírus se encontra no sistema nervoso, não há mais tratamento. Quando existe uma suspeita forte, a pessoa deve ser tratada com soro antirrábica antes de ter um diagnóstico conclusivo. Se ficar esperando 24h, esse pode ser o tempo para o vírus chegar ao sistema nervoso e não ter mais como fazer o tratamento.
C.B.: Como é feita a avaliação para uma área ser considerada livre de raiva?
Ricardo: Ela é feita em cima de análise de risco. A raiva ocorre em locais onde tem a presença do morcego hematófago, que precisa de abrigos naturais ou artificiais para se manter. Então, geralmente, são áreas de mata, em que tem cavernas ou, às vezes, têm condições naturais como bueiros, carvoarias abandonadas, minas de exploração. Então, a obrigatoriedade é, basicamente, fundamentada nisso, em uma avaliação de risco de onde há concentração grande de população de morcegos hematófagos.
C.B.: Quais são as maiores dificuldades para o combate a doença? Especificamente em Mato Grosso do Sul?
Ricardo: É o que a gente chama de educação sanitária. Basicamente, é a conscientização do produtor em relação a importância da doença em áreas de risco, com a preocupação de ter a vacina no calendário sanitário, fazer com que os animais recebam a dose e o reforço e sobre a questão de monitoramento. Então, se ter focos ou saber de ocorrência de casos nas propriedades vizinhas, devem fazer a notificação. Sempre que tem uma morte ou mortes do rebanho por doenças, isso serve para qualquer doença, mas nesse caso específico tem que procurar um serviço veterinário especializado para fazer a coleta dos materiais e encaminhar para ter diagnóstico preciso. No caso da raiva, precisa tomar as medidas que são pertinentes mas, infelizmente, como a gente falou, depois que a doença se espalha há pouca coisa a se fazer, o importante é evitar que ela chegue ao rebanho.
C.B.: Um animal infectado pode apresentar risco para outros que estejam próximos?
Ricardo: No caso do bovino não. O bovino é o que a gente chama de hospedeiro terminal, ele abriga, desenvolve a doença e é fatal. Mas diferente do cão e de outros animais selvagens, como o próprio morcego, a eliminação do vírus pela saliva dos bovinos é considerada insignificante. Além disso, o bovino não fica agressivo, então não vai morder outros animais. Um bovino não transmite raiva para outro bovino. O problema todo tem que se concentrar na questão do morcego hematófago. Agora, o que seria de risco para o bovino transmitir para pessoas seria através da manipulação sem o devido cuidado com esses animais. Por exemplo, no nosso caso, se um [médico] veterinário vai fazer uma necrópsia, abre o sistema nervoso central tendo contato direto com tecido que possui grande quantidade de carga viral, então nesse sentido é perigoso. É um risco mais ocupacional, digamos assim, do que problema de saúde pública. A raiva, do ponto de vista de saúde pública, é mais envolvendo outros tipos de animais, como cachorro e gato, que desenvolvem e disseminam a doença em grande quantidade. Quando estão doentes ficam agressivos e tem o hábito de morder as pessoas. Em outras regiões do país, como norte e nordeste, há bastante problemas devido ao hábito de, às vezes, animais selvagens conviverem com pessoas, como macacos e babuínos, que podem contrair a doença e transmitir para o ser humano. Temos também a situação do morcego hematófago urbano. O morcego infectado cai dentro de casa, a pessoa manipula e, para se defender, dá uma mordedura. Tem questões até que, em alguns locais do Brasil como a região norte, onde existe grande população de morcego hematófago sem outra fonte de alimentação, passam a se alimentar de pessoas. Nós temos casos de raiva humana transmitida por morcegos hematófagos, mas são basicamente situações bem distintas da questão da raiva bovina.
C.B.: No projeto de pesquisa realizado na UFMS, como funciona a mensuração dos impactos econômicos que a doença pode ocasionar na produção? Como isso é realizado?
Ricardo: A metodologia basicamente é ver o número total de animais de corte que acontecem em um surto e um estudo de quanto esses animais representam em relação ao rebanho total da propriedade, do capital de bovinos que a pessoa tem. A gente faz um cálculo de que, se que a pessoa tivesse feito uma prevenção correta através da vacinação, quanto teria investido na vacina e quanto com um pequeno investimento poderia ter evitado um grande prejuízo. Então é basicamente nesse sentido. Tem a categoria animal ou as categorias que estão sendo afetadas, estima-se quanto cada animal desse representa em valor, quanto que a morte desse animal causou de prejuízo em relação rebanho dele, e faz um cálculo de quanto poderia ter evitado com a imunização. Por exemplo, uma vacina dessa custa em torno de R$ 0,50. Se tivesse a dose e o reforço, ele gastaria R$ 1,00 por animal para ficar imunizado. Isso no primeiro ano. No segundo, seria ainda menos. Então, vamos dizer que se ele perdeu um animal de R$ 2.000,00, poderia ter imunizado dois mil animais com o preço de um.
C.B.: Ainda sobre o projeto de pesquisa, quais foram os principais resultados obtidos até o momento em relação a raiva bovina?
Ricardo: Estamos trabalhando ainda, mas temos algumas publicações, dados bem consolidados sobre algumas doenças que ocorrem nos animais de reprodução aqui no Mato Grosso do Sul. A gente tem um levantamento de alguns anos, em que a gente vem trabalhando com esses dados de forma mais consistente. Temos uma boa caracterização das que causam maior mortalidade e, neste caso, a raiva também tem causado muito prejuízo econômico. Até agora, a nossa metodologia se mostrou boa para avaliar os danos em cada propriedade por ser bem ajustada e calculada individualmente. O nosso maior desafio é tentar extrapolar esses dados para o estado, em uma metodologia que consiga avaliar o quanto isso causaria de perdas no conjunto. O maior problema é que há subnotificação. Muitas pessoas não procuram o serviço oficial ou mesmo as universidades. É difícil fazer a estimativa do conjunto porque a base de dados ainda é precária. Muitas vezes, a pessoa não tem o conhecimento da importância de fazer a notificação e, quando a informação chega, já perdeu vários animais, não conseguiu acionar o sistema de diagnóstico, então muitas das informações são perdidas. Isso dificulta bastante uma análise da situação do estado.
C.B.: Quais são as considerações finais que o senhor tem a fazer sobre o projeto de pesquisa?
Ricardo: A gente tem um serviço de diagnóstico que está a disposição de todos os médicos veterinários, com excelentes professores rurais, e toda cadeia produtiva. As pessoas que tiverem problemas sanitários e interesse, tanto os produtores como os profissionais, nós prestamos esse serviço de auxílio laboratorial. Na verdade, esta é a base de todo nosso projeto e, logicamente, com esses dados, temos uma condição de fornecer orientação para a pessoa de como funciona a contenção do problema naquele momento, como também de como prevenir que aquilo não ocorra futuramente.
*Texto supervisionado por Douglas Ferreira