"Mãe das braquiárias" e a revolução no campo

Aposentada após 44 anos de carreira, Cacilda do Valle mudou o cenário das pastagens brasileiras

13/09/2019 às 12:27 atualizado por Thalya Godoy* - SBA | Siga-nos no Google News
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De visitas a fazendas durante os recessos escolares a vida urbana, na capital paulista, Cacilda Borges do Valle, pesquisadora nível A da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), desenvolveu interesse pela agronomia ainda jovem. Durante a carreira, trabalhou com pesquisas e projetos na área de melhoramento genético de vegetais, mais especificamente com as braquiárias. Com o seu trabalho, Cacilda acompanhou a passagem de um Brasil importador de alimentos para um dos maiores exportadores do mundo. Confira a entrevista exclusiva ao Canal do Boi concedida pela pesquisadora considerada uma das 100 pessoas mais influentes do agronegócio. 

 

Cacilda esteve na lista dos dez heróis da Revolução Verde.
Foto por: Eliana Cezar - Embrapa

C.B.: O que a levou a escolher a área?
Cacilda: Eu nasci na capital de São Paulo, de família bastante urbana, mas sempre passei as férias nas fazendas do meu tio, então automaticamente já tinha esse amor pelas terras, pelas plantas. Fui fazer agronomia e sempre gostei muito dessa parte de fisiologia vegetal. Quando fui contratada pela Embrapa, fui escalada para trabalhar na Embrapa Gado de Corte e, com isso, a diretoria me encaminhou para fazer estudos em pastagens. 

C.B.: O que te motivou a devotar a sua pesquisa para a área das forrageiras?
Cacilda: Foi praticamente natural quando nós chegamos aqui no Mato Grosso do Sul, em 1978. O Centro estava recém-inaugurado e tínhamos que resolver o problema do boi sanfona, aquele boi que ganhava peso nas águas e perdia na seca. Então, automaticamente, pela pastagem ser a alimentação principal dos animais, a gente tinha que resolver o problema das forrageiras.

C.B.: O que representa a pesquisa científica na sua vida? E o contato com o campo? Os sentimentos são parecidos ou pesam de forma diferente?
Cacilda: Ao estudar agronomia, sempre fui bastante estudiosa e gostei dessa parte da investigação. Quando fui fazer o meu mestrado, então encaminhando para essa carreira acadêmico-científica, me interessei muito pelo que meus orientadores e colegas faziam lá nos Estados Unidos, onde estava fazendo o mestrado. Essa curiosidade científica foi despertada e, quando cheguei, era sempre interessante ler novos trabalhos e investigar. Acho que essa curiosidade é uma coisa que me persegue até hoje. É boa porque não precisa ser só na vida científica, mas também para a vida particular. Fazendo pesquisa você tem o contato com o campo, porque tudo tem que ter um fundo prático. Os diretores sempre diziam que a pesquisa começa no campo e retorna para o campo, então tínhamos que responder demandas do setor produtivo. Por isso, além de ter que investigar essa parte científica, ler trabalhos, ir para o laboratório e fazer algumas experiências, a gente tinha automaticamente que depois colocar essas experiências em prática, no campo.

C.B.: O que acha de ser considerada a “mãe das braquiárias”? Agora com a aposentadoria, a área ficará órfã?

Cacilda: Essa denominação de “mãe das braquiárias” acho um pouco interessante, porque, na verdade, eu me considero quase que a avó das braquiárias. Sempre brinco com as minhas colegas, porque nós somos em uma equipe bastante grande trabalhando com a geração de cultivares, eu começo a brincadeira e faço os cruzamentos. Nesse aspecto, sou mesmo mãe, porque cruzo um macho e uma fêmea, produzindo híbridos, selecionando os materiais, mas, na sequência, esse material tem que passar na mão de uma porção de pessoas. A prova cabal para dizer se esse material é bom ou não para os animais que vão pastejá-lo está na mão dos que fazem as avaliações com os animais, que não é o meu caso. Sempre brincava com Valéria, o Rodrigo e com Denise que as verdadeiras mães e pais são quem fazem a avaliação subpastejo, que não é a minha especialidade. O meu é mais o melhoramento genético mesmo. Eu tive a felicidade de ter um colega contratado há 11 anos, que trabalhou comigo durante esse tempo e está muito bem dentro do programa de braquiárias. Ele é o líder do projeto há mais de quatro anos, responde também no convênio da Embrapa com a Unipasto pela gestão do gênero braquiária com vários colegas de outras unidades da estatal, trabalhando juntos, que é o Dr. Sanzio Barrios, então órfão realmente não está. A pesquisa agora tomou um rumo tal, que tem mais pessoas. Quando comecei, praticamente estava sozinha no melhoramento, mas agora já tem mais gente trabalhando, temos empresas multinacionais que também estão investindo no melhoramento de braquiária. Então não, não acho que a área vai ficar órfã. 

C.B.: Qual foi o melhor momento da sua carreira? E o pior?

Cacilda: Eu não sei dizer se eu tive realmente um pior momento, acho que os desafios sempre estavam ai. Nós já passamos por outras crises financeiras, onde era um pouco desanimador não ter os recursos para realizar tudo aquilo que a gente tinha escrito no projeto que iria fazer. Então, acho que isso é uma sensação ruim porque você diz 'ah, eu prometi e não vou conseguir cumprir e não depende mais de mim, estava fora da minha ossada poder fazer', mas não posso dizer que foi muito ruim, foi só um pouco frustrante. Quanto ao melhor momento da carreira, eu não sei dizer se não é o atual porque, afinal de contas, estou saindo com a sensação de dever cumprido, de que fiz muitas conquistas, muitos amigos e colegas, estimulei bastante alunos a seguirem dentro dessa linha. Então é aquela sensação muito gostosa de ter feito um trabalho que chegou aonde precisava, alcançando a cadeia produtiva, e recebi agora o reconhecimento de muitas partes, não apenas do setor produtivo, mas dos próprios colegas e de muitos alunos. 

C.B.: Por ser mulher em uma área predominantemente ocupada por homens, a sra. enfrentou alguma dificuldade?

Cacilda: Isso já no curso de agronomia. Éramos 200 alunos na Esalq, em Piracicaba, e apenas seis moças. Eu realmente me sentia um pouco estranha, porque falava 'umas disciplinas muito interessantes, um curso tão bonito e tão poucas mulheres', o que não é a realidade de hoje. Quando me formei, infelizmente não tinha emprego, apesar de ter sido uma ótima aluna. Nessa época, onde mulheres não eram muito facilmente contratadas na agronomia, eu acabei indo mais ainda para a área da pesquisa. Morando em São Paulo, casada com um agrônomo que estava contratado já no quarto ano de agronomia, antes de ser formado, era bastante difícil. Eu comecei a fazer estágio no Instituto Biológico de São Paulo, depois passei em um concurso público para o Instituto Florestal, onde ia realmente trabalhar novamente com pesquisa, até ser chamada pelos professores da Esalq para fazer parte da Embrapa. Hoje, absolutamente não me sinto diferenciada. Por estar dentro da Embrapa, nunca fui segregada por ser mulher. Claro que a gente trabalhava com uma porção de homens no campo, muitas vezes não tinha banheiro, era um pouco estranho, mas nunca senti desrespeito e nunca me senti diferenciada. 

C.B.: O que é uma aposentadoria para você?

Cacilda: Na verdade, estou me afastando aos pouquinhos, porque como nós temos uma parceria com a Unipasto, que é a Associação de Produtores de Sementes Forrageiras, e ainda tem algumas pendências dentro desse contrato com as braquiárias, eu vou continuar indo sem o compromisso de estar diariamente, das 07h30 até as 16h30, na Embrapa. Ainda vou fazer algumas visitas de campo, inclusive fora daqui da Embrapa Campo Grande (MS). Até o final do ano vou ter um pouquinho de vínculo, mas é uma sensação muito gostosa, porque vou fazer essas atividades dentro do meu ritmo, do meu horário, sem ter a preocupação das outras burocracias que são associadas a você ter um emprego. Então, por enquanto, estou encarando essa aposentadoria com muito prazer. 

 

 

C.B.: Qual a sua visão de futuro para a pesquisa das plantas forrageiras no Brasil?
Cacilda: Nós chegamos no ponto em que temos um portfólio de opções de forrageiras para serem plantadas em formadas pastagens e não temos mais que se preocupar com aquela urgência de oferecer alternativas. Aonde nós estamos caminhando? A inserção dessas alternativas, que já temos uma porção de braquiárias, de panicuns e entrando outras cultivares agora no convênio com a Unipasto de andropogon, de arachis, de paspalum. A nossa visão agora é a inserção dessas diferentes cultivares em sistemas de produção, sejam eles Integração Lavoura-Pecuária, Integração Lavoura-Pecuária-Floresta, Pecuária-Floresta, mas também em nichos de mercado que são as forrageiras mais resistentes a períodos extensivos de seca, mais adaptadas para solos úmidos, o que nós, por enquanto estamos bastante carentes. Então, com essas mudanças climáticas, às vezes com excesso de chuva, às vezes com falta de chuvas, ficamos um pouco sem alternativas de sugestão e de manejo de pastagens. Estamos encaminhando essas seleções de novos cultivares para estresses, sejam eles bióticos ou abióticos, para pragas e doenças ou para alternativa de melhor uso de elementos e nutrientes do solo, para fazer melhor uso de fertilizantes, de água, fixação de carbono e de outros elementos como o nitrogênio. 

C.B.: Como foi estar na lista dos dez heróis da Revolução Verde Brasileira em 2013 e considerada uma das 100 pessoas mais influentes do agronegócio pela Revista Dinheiro Rural?
Cacilda: A gente trabalha sem nunca pensar nessas coisas de onde vai chegar ou esperando reconhecimento e homenagens. Para mim, é sempre um pouco surpreendente, para falar bem a verdade. Primeiro, porque nós somos uma grande equipe. Então eu sou mais uma dentro de uma equipe. Ok, talvez pelo seu meu espírito engajado de querer ver resultados e de cobrar. Nunca cobrei tanto dos outros que eu não fosse capaz de fazer. Eu acho que era exigente sim, sou exigente, mas sou no nível daquilo que eu consigo fazer. Espero dos outros aquilo que espero de mim. Mas essas homenagens e nomeações são sempre um pouco surpreendente, fico sempre pensando 'será que é isso mesmo?'. Acho que não fiz mais do que a minha obrigação. Afinal de contas, estudei em uma escola gratuita, que foi a USP. Depois sai para fazer mestrado e doutorado as custas do povo brasileiro, porque naquela época a Embrapa teve que fazer empréstimos com o Banco Mundial e etc., então praticamente toda a população brasileira teve que cobrir um pouco desses empréstimos. Acho que a gente tem que fazer o nosso melhor possível e tentar dar esse retorno para a sociedade. Isso é uma satisfação não apenas pessoal, como é praticamente uma expectativa do grande público, sendo dessas instituições públicas. 

C.B.: Como foi acompanhar a transformação de um Brasil importador de produtos para um dos maiores exportadores de alimentos atualmente? Se sente parte dessa mudança?
Cacilda: Eu me sinto sim muito parte da mudança de um Brasil importador de alimentos para um país tão pungente na agricultura. Afinal de contas, quando estava na faculdade, nós importávamos tudo. Leite, arroz, os alimentos básicos do Brasil. Muitas vezes, até feijão tinha que ser importado, a carne com certeza. Era uma situação muito precária de insegurança alimentar. Quando a gente entrou na Embrapa, que foi em 1975, o país ainda estava no regime militar. Estávamos em uma situação de precariedade e, aos poucos, fomos vendo o que era possível fazer, porque não era nem coisas tão mirabolantes que tinham que ser feitas. Na verdade, eram relativamente simples, de adaptação de tecnologias que já existiam para o nosso agro, para a nossa realidade. Com isso, fazia-se uma grande mudança, que foi de uma agricultura inexistente, muito precária, para uma agricultura de altíssima precisão, de tanto impacto mundial como é a nossa agricultura de hoje. Eu fico sim muito feliz de ter feito parte dessa mudança de atitude, de mesmo de transferência de tecnologia. Isso lamentavelmente, naquela época, ainda existia, em todas as empresas de transferência de tecnologia, tanto a nível nacional como em nível estadual. Infelizmente, com o presidente Collor, foi tudo encerrado, como a Embrater. Essa grande dificuldade da diferença da transferência da pesquisa para o campo, ficou um pouco a pé. Então, tínhamos nós, que às vezes fazia de pesquisadores, às vezes fazia de extensionista, mas também foi um grande desafio.

C.B.: Qual a importância de pesquisas na área de melhoramento de forrageiras tropicais para o agronegócio brasileiro?
Cacilda: Eu vou ser até um pouco mais ambiciosa. Não só para o agronegócio brasileiro, como para o agronegócio do mundo tropical. Infelizmente, só o Brasil que está investindo pesado em melhoramento de forrageiras tropicais para o mundo tropical. Quando a gente vai nesses congressos internacionais e, nós fomos neste último que foi na Austrália, só nós fazemos melhoramento genético de forrageiras, aqui no Brasil e mais um centro internacional de agricultura tropical que fica na Colômbia, que mexe com braquiárias e panicuns. Mas tem outros capins e leguminosas forrageiras tropicais que precisam e merecem ser melhorados geneticamente.

C.B.: O que precisa avançar nesta área de pesquisa na sua visão?
Cacilda: É a contratação de mais melhoristas e investir em novos gêneros forrageiros. Olha o nosso nordeste brasileiro que precisa tanto de materiais forrageiros adaptados ao semiárido. Então, precisaríamos ter mais melhoristas e de investimento em fisiologia vegetal, porque fisiologista vegetal também é, praticamente, uma raça em extinção. Hoje em dia, o pessoal que está em curso superior quer mexer ou com informática, com drones e outras tecnologias de informática ou mais com essa parte molecular, de genética, transformação gênica, genômica, proteômica e nanotecnologia. Nós precisamos, na verdade, de gente que ponha a mão na terra e os pés com bota no campo. Está faltando realmente investimento, novos grupos de melhoristas de forrageiras. Com isso, com certeza conseguiríamos explorar melhor esses gêneros de forrageiras, que estão órfãs hoje. 

C.B.: Agora que está se aposentando, como avalia a sua carreira?
Cacilda: Uma pergunta bastante difícil. Fazendo uma retrospectiva desses últimos 44 anos que sou contratada da Embrapa, parte desse tempo, claro, passei fazendo meu mestrado e doutorado, então era mais como estudante do que como profissional. Eu avalio como uma oportunidade excelente, de crescimento e amadurecimento profissional muito bom. Quando começamos, a gente escrevia um projeto, contava com uma equipe bastante jovem e com estímulo muito grande. Era uma demanda grande do setor produtivo, então os avanços eram bastante rápidos e recompensadores. Agora, mais ao final, a gente vê que os passos são menores. Não são aqueles grandes passos que a gente deu há 30 anos, mas que, ainda assim, os desafios são cada vez maiores. A gente vê essa turma nova que está entrando, nos substituindo, vem com um sangue novo, com perspectivas novas. Para a gente que estava junto, trabalhando com esses jovens, vemos com bastante interesse, expectativa e promessa com esse pessoalzinho novo que está chegando. Então, foi interessante, porque eu entrei completamente "verde" na empresa, trabalhando sem conhecer direito a cadeia produtiva e saio bastante convencida de que a gente fez grandes progressos. A gente, eu digo, os pesquisadores e a cadeia produtiva. Agora estou vendo que tive a oportunidade de treinar praticamente uma pessoa que está me substituindo na braquiária, mas isso existe para todos os outros gêneros. Nós vemos esse pessoal novo se interessando, trabalhando com afinco e a gente tem muita esperança que isso vai dar certo. Eu avalio a minha carreira como muito bem-sucedida. Ocorreu tudo muito bem. Muitas vezes, digo que tive muita sorte de estar no lugar e hora certa e, por isso, a gente conseguiu chegar onde chegou. 

 

*Texto supervisionado pelo jornalista Douglas Ferreira.


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