PANCs apontam para o nativo da alimentação e a resiliência da agricultura

Algumas plantas foram populares, mas foram preteridas por outras ao passar dos anos

13/01/2022 às 17:21 atualizado por Thalya Godoy - SBA | Siga-nos no Google News
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As Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANCs) remetem ao primitivo, do que há de mais nativo e doméstico na agricultura. Estão no país há centenas ou milhares de anos e foram resistentes e resilientes às mudanças climáticas e de solo ao longo do tempo.

No meio da vegetação, as PANCs podem ser confundidas como pragas, simples mato ou flores comuns na paisagem que surgem espontaneamente. Foram populares no passado, mas caíram em desuso com o passar dos anos. 

As plantas são antigas, mas o acrônimo para designar este tipo de plantas é recente – foi criado em 2008 pelo pesquisador Valdely Ferreira Kinupp, autor em conjunto com Harri Lorenzi do mais famoso guia brasileiro de PANCs, o “Plantas Alimentícias Não Convencionais no Brasil”.

“Eu conheci as PANCs inicialmente com minha mãe, mas não tinha nome de PANCs naquela época. A gente utilizava essas plantas tanto para fazer remédios como para utilizar na liturgia e para comer”, relata a chef de cozinha do Culinária de Terreiro, Solange Borges.

A baiana conta que conhece, por exemplo, desde pequena a língua-de-vaca, que por alguns é considerada PANC e por outros não.

 

 

Solange cultiva em casa beldroega, língua-de-vaca, taioba, bertalha, ora-pro-nóbis, abóbara moringa, cana-do-brejo e vinagreira. “Aqui tem uma infinidade [de PANCs] e sempre tem alguém trazendo mais alguma coisa”, conta. 

Efó com taioba é um dos pratos preferidos. Entram na lista também preparos com a ora-pro-nóbis, capeba e com a flor da abóbora moringa. A dica da chef de cozinha é se permitir experimentar a sair do convencional, como do coentro, alface e couve, e adicionar outros sabores, nutrientes e texturas na alimentação. 

“A efó com taioba para mim é um dos pratos mais incríveis. A base é o tempero da comida tradicional de terreiro, que é camarão, cebola e dendê, e pode acrescentar amendoim, castanha e leite de coco. Você faz essa base e coloca a fibra da taioba. O sabor, a textura e apresentação do prato é magnífica”, ela explica.

Outro conselho é experimentar aos poucos, iniciando pelo que tem mais familiaridade. A ora-pro-nóbis, planta famosa em algumas regiões, tem até um festival dedicado a ela no município de Sabará, em Minas Gerais. 

A mucilagem da ora-pro-nóbis, conhecida como “babazinha”, explica a chef, vai bem no refogado, em sucos, saladas e até no consumo crua. 

“Tem muitas possibilidades para utilizar. Dá para estudar e aprender, tem muita biografia, conteúdo na internet e em páginas no Instagram que falam sobre as plantas não convencionais e com receitas maravilhosas”, recomenda a chef.

No momento de introduzir uma planta alimentícia não convencional na dieta são importantes alguns cuidados. O primeiro é saber identificar a planta, com a ajuda de alguém que conheça aquele alimento ou com o auxílio de um guia sobre PANCs, em páginas da internet e base de dados do Ministério da Agricultura ou da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). 

Com o nome científico em mãos, a busca por mais informações sobre a planta, como se há toxicidade, pode gerar resultados mais exatos. 

“A partir do momento que a planta tem uma certa toxicidade, ela já não é uma planta alimentícia não convencional, ou seja, não deve inserí-la no cardápio”, alerta a professora dos cursos de nutrição e ciências biológicas da Universidade Federal de Viçosa, do campus Rio Paranaíba, Martha Elisa Almeida.

Uma PANC pode ser consumida por qualquer pessoa, em qualquer estágio da vida, sem a supervisão de um médico ou nutricionista.

Martha Almeida exemplifica que uma planta pode apresentar propriedades tóxicas, mas que, se consumida com moderação, não representa risco à saúde. 

A semente do tomate possui oxalato, um ácido que se ingerido todos os dias pode levar a formação de cálculos renais em quem é propenso a ter a doença. Nesses casos, o fruto se torna tóxico. 

 

 

Um exemplo entre as PANCs é a Taioba, uma planta saborosa, mas que o consumo da folha crua tem propriedades, como a saponina, que prejudicam o paladar. 

“A gente pode comer várias partes de uma planta, como as raízes, o caule, as folhas, as flores, os frutos ou as sementes. Depende da parte que quer utilizar ou que já é consumida habitualmente”, diz a professora e doutora em agroquímica.

As PANCs podem ser encontradas nos jardins de casa, como o dente-de-leão, pincel-de-estudante, beldroega ou maxixe. 

Plantas na rua, lixão ou cemitérios não devem ser consumidas devido à presença de resíduos poluentes nesses ambientes.

De acordo com a professora, boa parte das PANCs são ricas em fibras dietéticas mais solúveis ou menos solúveis. As fibras dietéticas podem exercer a função de prevenção de diabetes, câncer, obesidade e dislipidemias.

Elas também são abundantes em água, um nutriente importante para prevenir doenças renais, por exemplo. A Beldroega é rica em ômega 3, nutriente comumente encontrado em peixes marinhos, que previne e trata doenças cardíacas e problemas neurológicos.

A ora-pro-nóbis é fonte de ferro e cálcio e pode ajudar a evitar a anemia ferropriva e doenças ósseas, respectivamente.

A preparação das PANCs depende da planta e do prato. Uma flor tem uma maneira de ser feita enquanto para uma raiz há outra. Algumas plantas podem ser consumidas cozidas ou cruas. 

O peixinho, por exemplo, é uma planta popular pelo seu cheiro quando empanada ou frita. O aroma é semelhante ao de peixe frito, enquanto o sabor da folha permanece. A planta também pode ser usada em outras receitas, como lasanhas. 

“Se eu quero usar um cará-moela, eu vou utilizar a raiz aérea, que é o cará. Ele pode ser preparado na forma de um purê ou chips”.

“Para usar a bananeira, por exemplo, aquela parte que a gente chama de umbigo ou filé da bananeira, eu preciso cozinhá-la porque senão vai deixar um sabor amargo que não vai ter grande aceitação e não vai ser tão palatável”, exemplifica Martha Almeida.

 

PANCs Brasil
A cozinha da Clarissa Taguchi virou laboratório depois que conheceu as PANCs há seis anos em uma feira de produtos orgânicos com plantas nativas da Mata Atlântica. 

Conheceu o guia sobre PANCs do Kinupp e Lorenzi e logo quis conhecer novos temperos dessa classe de plantas e voltar a trabalhar com alimentação.

Da curiosidade e novo desejo de levar biodiversidade para a cadeia de alimentos, Clarissa fundou a PANCs Brasil, a primeira linha de produtos com esse tipo de planta no país, que incluem molhos, conservas, geleias, azeites e temperos.

 

 

Ao lado do marido, que é agricultor orgânico, testaram mais de 400 espécies em três biomas, domesticaram o que não tinha semente para comprar e compreenderam que as PANCs, como biodiversidade no campo, podiam regenerar o solo e ser resilientes às mudanças climáticas. 

Receitas foram criadas a partir da experiência na cozinha que ela adquiriu com a mãe e a avó. “Consumir temperos e formas de preparo através de fermentação era comum em casa, e me deu oportunidade de entender os sabores das plantas em diversas formas. Com a vontade de testar os novos sabores das PANCs, eu queria morar no mato para provar planta”, ela relembra.

“Eu e meu companheiro trocamos informações o tempo todo, e aprendi com ele tudo que precisava para deixar de ser manejo extrativista para virar cultivo com escala”.

Clarissa vê nas PANCS uma grande fonte de benefícios nutricionais para os consumidores. E a inserção de produtos da biodiversidade, ela acredita, não precisa ser um rompimento do consumo de alimentos conhecidos, como o tomate. 

Para inserir biodiversidade numa escala industrial alguns processos foram refeitos e outros melhorados. A mudança e inserção das PANCs nos produtos não foi simplesmente trocar um insumo por outro. Os cultivos, fórmulas, equipamentos e processos foram adaptados. 

“O que fizemos foi introduzir as PANCs e diminuir a quantidade de açúcares num ketchup. Inserir lavanda para suprimir o retrogosto da linhaça numa maionese plant-based”, Clarissa Taguchi exemplifica. 

 

 

PANCs nascem espontaneamente e não são cultivadas, geralmente, em grande escala. Também não são encontradas para comprar em supermercados e nem em feiras, o que exige um planejamento de produção bem estruturado para quem deseja trabalhar com produtos a base de PANC. 

“Domesticamos e cultivamos um berçário para que produtores associados cultivem em regiões distintas, evitando-se uma quebra de safra por conta das intempéries climáticas. O planejamento dos cultivos para a manutenção e lançamento de produtos é algo que pode levar anos, e esse é um processo extremamente relevante, porque não se encontra essas espécies para comprar”. 

Dentro desse planejamento, há dezenas de espécies, principalmente nativas, no calendário de produção, com todos os biomas brasileiros envolvidos. A construção de uma rede de parceiros, em biomas e microbiomas, está iniciando, mas evoluindo rapidamente, relata Clarissa. 

Para acertar na produção é preciso entender a adaptação de cada planta. Dados nutricionais, potenciais para indústria, levam anos de investimento em pesquisa.

“Temos uma equipe sênior especializada para desenvolver a biodiversidade na cadeia de alimentos de forma responsável e metrificada. Cada espécie que trabalhamos atualmente já foi amplamente testada, e o resultado, aceito por consumidores".

“A expansão do nosso negócio depende da produtividade em escala das PANC, depende do planejamento de cultivo bem implementado e escalonável”, afirma a empreendedora.

 

Foto de capa: PANCs Brasil


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